O PROCESSO DE
INTERVENÇÃO
A intervenção
Uma série de serviços preliminares foram realizados antes da intervenção de restauro — estudos histórico e iconográfico, levantamento e mapeamento, diagnóstico do estado de conservação —, utilizando métodos científicos de exame e análise, documentações de diversas naturezas, etc.
A intervenção foi iniciada pela higienização e refixação das camadas pictóricas e douradas de todas as peças e, em seguida, pelo tratamento dos suportes, que passaram por desinfestação, sendo a infestação de cupim a principal causa de deterioração com grandes danos à talha, e, posteriormente, foram feitas a consolidação e a reconstituição de áreas de perdas.
Para a consolidação das áreas fragilizadas da talha, que se encontravam totalmente ocas pela ação do cupim, foi necessário o desmonte parcial, que foi iniciado depois do mapeamento e estudo das junções originais dos blocos. Utilizou-se faceamento com papel japonês e polpa de celulose para modelar as formas/relevo para melhor proteção dos volumes, garantindo, assim, o desmonte das peças com segurança. Para as peças que apresentam curvaturas, foram confeccionados suportes — “berços” —, para evitar movimentações e consequentes alterações das formas. Após o desmonte, as peças foram identificadas pelo verso e armazenadas em bancadas de trabalho.
Na consolidação e reconstituição de áreas de perdas no suporte, todos os elementos de madeira foram recuperados. A madeira fragilizada recebeu uma solução com a finalidade de reestruturar as fibras, e as galerias de cupim foram preenchidas. As peças que continham galerias profundas foram desbastadas, e, para a recuperação da espessura original do suporte, foi utilizada a técnica de parquetagem, utilizando-se madeira de cedro, sendo cada parqueta chanfrada a 45º, variando as medidas de acordo com as dimensões e características de cada peça.
Depois de todas as etapas de tratamento do suporte, foi iniciada a investigação sobre as cores, cuja metodologia aplicada poderá ser observada com maior detalhe nos tópicos a seguir — assim como as demais etapas analíticas que a compuseram.
Prospecções
A descoberta das cores dos conjuntos pictóricos no interior da igreja se deu a partir da abertura de janelas de prospecção.
Nas primeiras prospecções realizadas em 2004, durante uma intervenção emergencial para a consolidação dos bens integrados à capela-mor, foi possível identificar as policromias originais.
Em janeiro de 2007, deu-se início ao trabalho de recuperação das cores ocultadas na capela-mor, passando das camadas de branco e douramento para a pintura original: fingidos de pedra nas cores bege de fundo e azuis na composição do fingido, ornado com douramento e lacas vermelhas. Essa intervenção foi finalizada em julho de 2008.
Na ocasião da intervenção na capela-mor, foram realizadas prospecções nos bens integrados à nave e na talha do forro (teto) com cimalha. Depois do intervalo de alguns anos, a partir de 2017 até fevereiro de 2021, foi empreendido o restauro em todos os elementos decorativos da nave da igreja — forro (teto) com painéis moldurados por rica talha dourada e policromada, retábulos, pintura artística, cantaria policromada.
Caracterização das camadas pictóricas com análises físico-químicas
Uma vez evidenciadas as camadas pictóricas — na medida em que foram efetuadas as prospecções anteriormente relatadas — iniciou-se, então, a aplicação de uma série de exames e análises físico-químicas a fim de caracterizar quimicamente essas camadas. Essa fase contou com o apoio, em parte ou total, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trata-se de uma etapa importante para o conhecimento das técnicas e dos materiais empregados nas policromias e pinturas, assim como as transformações sofridas por esses materiais — envelhecimento, deteriorações, intervenções, etc. Essas análises foram iniciadas antes da intervenção de restauro e continuaram durante os trabalhos em andamento, sempre que necessárias.
No exemplo abaixo, mostram-se análises preliminares realizadas em uma amostra coletada no ornato de uma moldura do forro (teto) da nave da Igreja. O corte estratigráfico realizado, essencial para a identificação das camadas constitutivas, possibilita a posterior retirada, com segurança, daquelas camadas que ocultam a policromia original. Fotografia ao microscópio estereoscópico (Figura 1) e imagem de MEV do mesmo corte estratigráfico, para medir espessuras dos estratos (Figura 2).
Em uma análise prévia do estado de conservação dos painéis pintados, que compõem a decoração do interior da Igreja da Nossa Senhora de Conceição dos Militares, foi constatado que eles apresentavam a pintura encoberta por camadas de verniz oxidadas, modificando muito as cores originais e os tornando muito escurecidos. Assim, depois de realizados os devidos exames e análises, optou-se pela remoção das camadas de verniz. Durante esse processo, foi evidenciada a existência de pintura subjacente, original, em quatro dos dezesseis painéis: dois painéis inseridos nos revestimentos de talha das ilhargas da capela-mor: A Anunciação de Maria pelo Arcanjo Gabriel e A Apresentação de Maria no Templo; e dois inseridos no cruzeiro, A Ressurreição de Cristo e O Batismo de Jesus por João Batista no Rio Jordão.
Depois das análises necessárias, foi decidido junto ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) pela remoção da pintura mais recente, provavelmente do século XIX, surgindo, assim, a pintura original de meados do século XVIII, em perfeito estado de conservação, com o mesmo tema, de melhor qualidade técnica e estética, com uma paleta de cores distintas das que as cobriam e de tonalidades um pouco mais escuras.
Para o procedimento de remoção das camadas de repintura, realizado para trazer de volta à luz a policromia da talha, encobertas desde o século XIX, consideraram-se os seguintes fatores:
-
Composição de cada camada a ser retirada.
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Produto que removesse somente as camadas que se queria tirar sem afetar a camada subjacente.
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Metodologia a ser utilizada para não abrasonar a camada original ou, mesmo, deixar resquícios de produtos.
Nas diversas peças e áreas de remoção de repinturas, realizaram-se vários exames e testes de solvência, previamente, com solventes ou uma combinação deles. Depois dos resultados dos testes de solvência, deu-se início ao processo de remoção. Em algumas áreas, a remoção foi mecânica, com utilização de bisturi. Trata-se de um procedimento realizado de forma muito delicada a fim de não danificar a camada original, sendo um processo muito lento.
Depois de removidas as camadas de repintura das peças, foi possível avaliar as áreas de perda na camada pictórica original. Algumas peças apresentavam grandes lacunas, e, para serem reintegradas, fez-se necessário o seu nivelamento, aplicando-se camadas de bases de preparação. As áreas foram encoladas previamente; depois, aplicaram-se duas ou mais camadas de gesso cola (gesso grosso) e, por fim, duas a mais de gesso fino — camadas de carbonato de cálcio. O nivelamento dessas camadas se fez com trapo de tecido de algodão, ligeiramente úmido, retirando as marcas de pinceladas e nivelando as lacunas com as áreas originais circundantes.
Reintegração cromática dos bens integrados ao interior da igreja
Apoiando-se na ideia de que a fruição do espaço segundo sua estética original era de imensa importância para o conjunto, foi realizada a reintegração das lacunas identificadas no conjunto de bens integrados do interior da igreja. Para Paul Philippot, tanto as grandes como as pequenas lacunas podem provocar dificuldade na leitura; dessa forma, a reintegração cromática de uma lacuna deve ser entendida como um ato crítico que pretende estabelecer a unidade formal da obra, estruturando características que se perderam com o tempo (Philippot, 1996, p. 332).
Antes do início dessa etapa, observou-se que as policromias dos elementos da capela-mor e do forro (teto) com cimalha, por exemplo, apresentavam lacunas procedentes de danos causados pelo ataque de cupim e umidade, porém demostravam-se ainda íntegras. Nesse sentido, nessas áreas a reintegração cromática foi possível, considerando-se os elementos referenciais existentes, tendo, o restaurador, reintegrado-as com fidelidade. Realizou-se a colorimetria como forma de garantir equivalência entre as camadas pictóricas originais e as reintegradas e, por meio de um sistema universal codificado, as cores foram classificadas para permitir o acompanhamento de alteração cromática, ao longo do tempo.
Nos bens integrados à nave — retábulos, púlpitos e tribunas, constatou-se que a policromia original havia sido lixada em diversas áreas para receber a primeira camada de repintura no século XIX. Por apresentar grandes lacunas, na maioria das vezes, não havendo referências para sua recomposição (lacunas irreversíveis), a reconstituição das áreas de perdas foi realizada, criando-se a composição do fingido de pedra com elementos transferidos de áreas da capela-mor, do forro (teto), da cimalha e de outras peças que contêm a pintura original do século XVIII, porém utilizando a técnica de pontilhismo[2] para marcar a intervenção. Nas áreas recompostas, os pontos podem ser percebidos a uma pequena distância, enquanto na leitura geral não são perceptíveis. O critério utilizado encontra eco no pensamento de Cesare Brandi, que defende que “A restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (Brandi, 2004, p. 33).
Nas pinturas artísticas — dezesseis painéis, dois na capela-mor, onze no forro, dois na parede do cruzeiro e um no forro subcoro —, a reintegração cromática foi pontual, e se utilizou técnica ilusionista, pois as pinturas estavam em bom estado de conservação, apresentando, apenas, pequenas lacunas.
Reintegração das lacunas de douramento
Na intervenção, a folha de ouro utilizada nas lacunas foi o ouro de 24 quilates, por apresentar a cor próxima daquela do douramento original. Foi utilizada, também, uma técnica de integração com guache à base de mica em áreas que não são diretamente visíveis e em áreas que continham lacas escuras, nos baixos-relevos.
Antes da aplicação da folha de ouro, as áreas de lacunas foram preparadas com bolo amarelo aplicado em duas camadas: a primeira camada bastante diluída e outra camada mais densa. Em seguida, aplicou-se o bolo laranja para se obter a mesma tonalidade do bolo original. Por fim, o bolo vermelho foi aplicado nas áreas onde o ouro originalmente é brunido.
A aplicação da folha de ouro foi realizada com água de dourador (cola animal bastante diluída). Depois da secagem, o ouro foi brunido com brunidores de pedra de ágata.
Para reintegrar as áreas novas às do ouro antigo, estas receberam uma laca artificial; depois, foram utilizados pigmentos aglutinados com cola animal em gel, aplicados com pincel seco, esfumaçando em finíssimas camadas até aproximar-se ao máximo da coloração das áreas circundantes originais, sem alterar o brilho do ouro. A mesma técnica foi utilizada para dar um sombreamento sutil com a finalidade de marcar as áreas de sombreamento, o que valoriza a volumetria da talha.
1 - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil).
2 - Pontilhismo: técnica de pintura em que se utilizam pequenos pontos de cor justapostos para provocar uma mistura óptica aos olhos do observador.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO
Existência de enxertos, cravos e chapas metálicas de intervenções anteriores em um dos painéis do forro
Desprendimento da camada pictórica, já apresentando pequenas lacuna em um dos painéis do forro
Detalhe de Intervenções anteriores em um dos painéis do forro
Existência de pregos em um dos painéis do forro
HIGIENIZAÇÃO
Higienização das molduras dos painéis do forro
Higienização dos ornamentos da cimalha do forro.
Higienização da balaustrada do varandim do forro
Detalhe de limpeza da balaustrada do varandim
IMUNIZAÇÃO
Imunização da estrutura do forro
Imunização por gotejamento na cimalha da capela-mor
Aplicação de inseticida em colônia de cupim no lado direito do forro
Detalhe de aplicação de inseticida em colônia de cupim no lado direito do forro
REFIXAÇÃO
Detalhe de refixação de áreas de douramento no lado esquerdo do arco-cruzeiro
Detalhe de refixação de área de douramento nas asas de um dos arcanjos do arco-cruzeiro
Detalhe de refixação de área de douramento em descolamento em sanefa de uma das tribunas da nave
Detalhe da refixação de área de douramento em descolamento no guarda-corpo de uma das tribunas do lado esquerdo da nave
FACEAMENTO
Detalhe de proteção de peças com papel, para o desmonte
Preparação para desmonte - faceamento com papel em ornamento do intradorso do arco-cruzeiro
Detalhe de proteção de peças com papel, para o desmonte
Proteção dos relevos dos ornatos com polpa de celulose - preparação para o desmonte, lado direito.
DESMONTE
Desmonte de peças do forro da capela-mor
Área do camarim do retábulo-mor - durante a remoção de peças para restauração foram encontradas tábuas com pintura servindo de suporte para a talha
Desmonte do guarda-corpo de uma das tribunas da capela-mor
Desmonte de um dos atlantes do forro da nave
ANÁLISE FÍSICO QUÍMICA
Análise de policromia com espectrômetro portátil de fluorescência de Raios X (FRX)
Análises de amostras do forro, pelo professor Luiz Souza, LACICOR/UFMG
Preparação de amostras para análises
Detalhe de preparação de amostras para análises
PROSPECÇÃO
Prospecção realizada na moldura de um dos painéis do forro
Prospecção realizada na moldura de um dos painéis do forro
Mapeamento das prospecções realizadas no forro da nave
Prospecção realizada em ornamento do lado esquerdo do arco-cruzeiro
CONSOLIDAÇÃO
Preenchimento das lacunas-galerias de cupim no suporte
Preenchimento das lacunas-galerias de cupim no suporte
Detalhe de preenchimento das lacunas-galerias de cupim no suporte
Preenchimento de lacunas do suporte em um dos atlantes do forro
REMOÇÃO DE CAMADAS DE REPINTURA E VERNIZES
Detalhe de remoção de verniz de um dos painéis do forro
Detalhe de remoção de verniz de um dos painéis do forro
Detalhe de remoção de verniz de um dos painéis do forro
Detalhe de remoção de verniz de um dos painéis do forro
REMOÇÃO DE CAMADAS DE REPINTURA NA POLICROMIA DA TALHA
Equipe trabalhando na remoção de camadas de repintura em ornamentos do forro
Equipe trabalhando na remoção de camadas de repintura em ornamentos do forro
Equipe trabalhando nas molduras dos painéis do forro da nave
Equipe trabalhando nas molduras dos painéis do forro da nave
NIVELAMENTO
Equipe trabalhando no nivelamento de lacunas nos ornatos dos painéis do forro
Equipe trabalhando no nivelamento de lacunas nos ornatos dos painéis do forro
Nivelamento de lacunas na moldura de um dos painéis do forro
Detalhe de nivelamento realizado em moldura de um dos painéis do forro
REINTEGRAÇÃO CROMÁTICA DA POLICROMIA DA TALHA
Reintegração cromática na moldura de um dos painéis do forro
Reintegração cromática na moldura de um dos painéis do forro
Reintegração cromática na moldura de um dos painéis do forro
Reintegração cromática em ornamentos de um dos painéis do forro
REINTEGRAÇÃO CROMÁTICA DA POLICROMIA DOS PAINÉIS
Reintegração cromática sendo realizada em um dos painéis do forro
Detalhe de reintegração cromática sendo realizada em um dos painéis do forro
Reintegração cromática sendo realizada em um dos painéis do forro
Detalhe de reintegração cromática sendo realizada em um dos painéis do forro
DOURAMENTO
Limpeza das áreas de douramento original da moldura de um dos painéis do forro
Limpeza de áreas de douramento original em um dos púlpitos da Nave
Detalhe de aplicação de bolo armênio amarelo em áreas com lacunas de douramento a serem reintegradas, intradorso do arco-cruzeiro, lado direito.
Detalhe de aplicação de bolo armênio amarelo em áreas com lacunas de douramento a serem reintegradas, intradorso do arco-cruzeiro, lado direito.